- José Osterno
O AUTOR OU A OBRA: VOCÊ DECIDE

I – João Pereira Coutinho
Em um táxi pelas ruas de Lisboa, conversam passageiro e motorista.
O passageiro: “Grande gol de bicicleta do Ronaldo ontem. O senhor viu?”[1].
O motorista: “Sim, ele é bom”[2], faz uma pausa e continua: “Mas um pouco de humildade não lhe ficava nada mal”[3].
É o mote para a rica reflexão do passageiro, o escritor português João Pereira Coutinho, acerca do tema: a obra, apesar do autor, ou, dito de outra forma, o mérito da obra ante o demérito do autor.
Coutinho, dos adeptos do ‘mas’ e da “ditadura da igualdade”[4], afirma que eles, de Kafka, diriam: “Não sei, não: esse Franz aí me parece pouco social”[5].
De Picasso: “era um gênio da pintura, mas ele tratava mal as amantes”[6].
De Woody Allen: “tem grandes filmes, mas casou com a filha da ex-mulher”[7].
De Philip Roth: “foi um dos maiores escritores da América, mas seus personagens eram misóginos”[8].
De Kant: “escreveu a ‘Crítica da Razão Pura’. Mas ele cheirava mal dos pés e roncava como um suíno”[9].
Os ressentidos, como Coutinho adjetiva críticos como o taxista, têm “sempre um ‘mas’ para tornar o gênio menos perfeito”[10], e sempre apontam o dedo para aqueles que julgam defeituosos por “falta de humildade e humanidade”, mesmo não tendo “a humildade e humanidade suficientes para simplesmente admirar o que é admirável”[11].
Chega Coutinho à síntese conclusiva de sua reflexão: “de onde vem essa ideia meio retardada de que um gênio deve ser também uma Madre Teresa de Calcutá”[12]?
II – O outro lado da moeda
E se – por hipótese – esse mesmo gênio, além de escritor como Kafka; ou pintor como Picasso; ou cineasta como Woody Allen; ou filósofo como Kant; fosse também estuprador contumaz; ou serial killer; ou alguém com ideias racistas e escravocratas; ou ferrenho defensor da dizimação de populações indígenas e do meio ambiente; ou, ainda, alguém terrivelmente (para usar uma expressão da moda) pedófilo ou misógino; mereceria esse multifacetado gênio, de elogiável e invejável obra, mas de ações ou ideias socialmente reprováveis, o reconhecimento artístico de prêmio da magnitude de um Nobel, por exemplo?
A resposta, no dizer do humorista televisivo: “É muito difícil”[13].
III – Peter Handke
Foi uma “decisão corajosa”[14], afirmou o escritor austríaco Peter Handke, ante a surpresa de sua indicação, pela Academia Sueca, ao prêmio Nobel de Literatura de 2019.
Reações negativas à decisão não tardaram.
A “Associação Mães de Srebrenica, criada por familiares de vítimas do ditador Slobodan Milosevic, entrou com um pedido para que o prêmio concedido ao austríaco, um notório defensor do ex-presidente da Sérvia, seja revogado”[15].
Às mães de Srebrenica, “cidade bósnia onde mais de 8 mil homens e meninos muçulmanos foram mortos em 1995”[16], somaram-se, em contestação, “países como Bósnia e Herzegovina, Kosovo e Albânia, que também se recusaram a aceitar o Nobel dado a Handke”[17].
III.1 – A acusação ou o demérito do autor
A presidente da Associação Mães de Srebrenica, Munira Subasic, em entrevista, considerou ofensivo o fato de “um homem que ‘espalhou o ódio e escreveu falsidades’ receber um prêmio desta magnitude”[18].
Handke “foi um ferrenho defensor dos sérvios na Guerra da Bósnia”[19], e “não apenas aceitou ser condecorado pelo ex-presidente da Sérvia como ainda discursou em seu enterro, em 2006”[20].
Slobodan Milosevic, que mereceu a fiel defesa de Handke, “foi acusado de crimes contra a Humanidade, como genocídio”[21].
Handke, além de desconsiderar a acusação contra Milosevic, ainda “escreveu em um artigo que o político não deveria ser chamado nem de ‘ditador’ nem de ‘carrasco’”[22].
III.2 – A defesa ou o mérito da obra
Dois momentos marcantes na vida da escritora, também austríaca, Elfriede Jelinek.
O primeiro: “Quando, em 2004, (...) se tornou a primeira austríaca a receber o Nobel de Literatura, disse que teria preferido se o laureado tivesse sido Peter Handke, descrito por ela como ‘o grande clássico autor de língua alemã’”[23].
O segundo: quando criticou a possibilidade de que circunstâncias da vida pessoal de Handke, como o discurso no enterro de Milosevic, se constituíssem em impedimento à sua premiação pela Academia Sueca, com o Nobel.
Elfriede, “apesar de seu conhecido engajamento à esquerda, se dizia disposta a defender ‘raivosamente’ o conterrâneo, admirado pelo seu modo ‘absolutamente belo’ de escrever”[24].
Alguém que escreve coisas absolutamente belas como: “Eu não resisti ao encantamento do momento. Eu tive vontade de esquecer que a vida nos é apenas emprestada”[25]; mas que defende também ideias de quem acusado de genocídio, é, ou não, merecedor da láurea do Nobel?
Anders Olsson, um dos membros da academia, “tentou minimizar a controvérsia: - Não é um prêmio político, é um prêmio literário”[26].
As Mães de Srebrenica, com suas almas feridas; ou Elfriede Jelinek, raivosa defensora da corajosa decisão da Academia Sueca: quem tem razão?
Você decide.
IV – O ovo e a galinha
Ele é bonito, mas fedido. É inteligente, mas grosseiro. Tem bom humor, mas péssima memória. É prestativo, mas mal agradecido. É corajoso, mas titubeante. É sedutor, mas volúvel. É capaz, mas nem um pouco humilde. É probo, mas não confiável.
É tudo isso de bom; mas também aquilo tudo de ruim.
A questão do mérito e do demérito, relativa à obra e ao autor, além de tormentosa, é sem solução?
Parece a anedota do ovo e da galinha: quem veio primeiro?
V – Referências bibliográficas
COUTINHO, João Pereira. O futebol não é para principiantes. In https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2018/06/12/. Acesso em 07.07.2020.
KON, Artur. Fronteiras da palavra. In Folha de S. Paulo, edição de 11.10.2019, caderno Ilustrada.
HANDKE, Peter. Autoacusação. In Peças faladas. Organização e tradução Samir Signeu. São Paulo: Perspectiva, 2015.
REPORTAGEM NÃO ASSINADA, sob o título “Aumenta pressão contra Nobel de Peter Handke”, constante no jornal O Globo, edição de 13.10.2019, Segundo Caderno.
[1] COUTINHO, João Pereira. O futebol não é para principiantes. In https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2018/06/12/. Acesso em 07.07.2020. O jogador de futebol referido é o português Cristiano Ronaldo. [2] IDEM. [3] IDEM. [4] IDEM. [5] IDEM. [6] IDEM. [7] IDEM. [8] IDEM. [9] IDEM. [10] IDEM. [11] IDEM. [12] IDEM. [13] BORDÃO utilizado pelo humorista Geraldo Magela, o ceguinho. [14] REPORTAGEM NÃO ASSINADA, sob o título “Aumenta pressão contra Nobel de Peter Handke”, constante no jornal O Globo, edição de 13.10.2019, Segundo Caderno, p. 3. [15] IDEM. [16] IDEM. [17] IDEM. [18] IDEM. [19] IDEM. [20] IDEM. [21] IDEM. [22] IDEM. [23] KON, Artur. Fronteiras da palavra. In Folha de S. Paulo, edição de 11.10.2019, caderno Ilustrada, p. C1. [24] IDEM. [25] HANDKE, Peter. Autoacusação. In Peças faladas. Organização e tradução Samir Signeu. Saão Paulo: Perspectiva, 2015, p. 178. [26] REPORTAGEM NÃO ASSINADA, sob o título “Aumenta pressão contra Nobel de Peter Handke”, constante no jornal O Globo, edição de 13.10.2019, Segundo Caderno, p. 3.